Coronelismo, enxada e voto


Caderno implacável

Os setenta anos de um clássico sobre política brasileira, de autoria de um ex-ministro do Supremo
Victor Nunes Leal. Coronelismo, enxada e voto:
o município e o regime representativo no Brasil.

Companhia das Letras • 360 pp • R$ 57,90
Em qualquer lista dos livros mais importantes já escritos por um ministro do STF, Coronelismo, enxada e voto, de Victor Nunes Leal, deverá estar entre os três mais. Se a lista for justa, estará em primeiro lugar. No ano em que se completam setenta anos de sua primeira edição (1948), poucas obras a superam na perenidade de sua importância. O que não deixa de ser irônico: o autor tinha o coronelismo, tal qual o conceituava, como um fenômeno fadado a desaparecer.
Há quem entenda que a profecia se cumpriu, que o coronelismo, aquele descrito no livro, acabou. Entretanto, nas bibliografia de cursos universitários, notadamente em ciência política — disciplina que o autor assumiu, em 1943, na então Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro —, a obra segue viva como nunca.
Contrariando o senso comum, para Leal o coronelismo indicava fraqueza, não força, do chefe local. O grande proprietário rural das pequenas cidades, típico “coronel”, via-se empobrecido pelo deslocamento da riqueza para as cidades. Sua força era apenas relativa à miséria dos que o cercavam: empregados, arrendatários e agregados. Prometendo entregar os votos de cabresto dessa população, coronéis barganhavam vantagens para si e para suas regiões junto aos governadores — os novos poderosos do federalismo republicano, que fortaleceu elites regionais ao dar autonomia aos Estados.
Os governadores, por sua vez, empenhavam o apoio nos estados, arregimentado pelos coronéis, ao governo federal. Garantiam, com isso, oportunas alianças. Presidentes que captaram logo a lógica do processo passaram a aliar-se incondicionalmente aos governadores, quaisquer que fossem os eleitos. Aos coronéis, alheios às grandes decisões, só restava aderir — eis a expressão de sua fraqueza.
Projeto político
A descrição de Victor Nunes Leal enfatizava os elementos estruturais desse processo, verdadeiro projeto político nacional. Seu pioneirismo esteve em identificar o sistema pelo qual operavam as relações de dominação política no Brasil rural, em vez de explicá-las pela índole, cultura ou temperamento do povo ou do coronel. Além da dependência econômica da população do campo, Leal apontava a falta de autonomia municipal como um fator decisivo para viabilizar o coronelismo. A preocupação com a emancipação política e econômica dos municípios era compartilhada por muitos juristas da geração da Constituição de 1946.
O contraste com os regimes anteriores era evidente: na Primeira República e na Era Vargas, a política regional orbitava em torno dos governadores ou interventores. Coronelismo aponta para o paradoxo da República, que depreciou o significado da vida política local até mesmo em comparação com o Império, quando as Câmaras concentravam importantes atribuições.
Muitos juristas de sua geração dedicaram-se a disciplinas como o direito municipal e o direito financeiro, que floresceram em busca da quebra do estrangulamento dos municípios, tão bem exposto no livro. Esses ventos chegaram à Constituição de 1988, que deu aos municípios um quinhão da federação brasileira. A geração da Constituição de 1946 assemelhava-se à dos juristas de 1988 em seus desígnios e esperanças: saídos de uma ditadura, aprovaram uma carta de grandes aspirações, em assembleia tão legítima quanto os tempos conheciam.
Supremo
Aquela constituição regeu a primeira experiência democrática de massa do Brasil. Em que pese a contínua perseguição ao Partido Comunista, houve eleições regulares e relativa competição política. Leal achou seu lado e pôs-se a serviço dos governos à esquerda do espectro partidário. Foi chefe da Casa Civil de JK entre 1956 e 1959, quando acabou indicado ao STF.
Até a sua chegada, o tribunal tinha pouco cuidado com a própria jurisprudência. Relatos do período dão conta de que a consistência das decisões da corte dependia da memória mais ou menos prodigiosa de alguns ministros — Hahnemann Guimarães é sempre citado. Leal notou que para trabalhar bem o Supremo precisava dar conta de suas competências com coesão e eficiência. Passou a anotar as posições tomadas nos julgamentos em cadernos, os quais levava às sessões para invocar algum precedente sempre que um ministro votasse em desconformidade com as decisões anteriores.
Evandro Lins e Silva, em depoimento ao cpdoc, lembrou que muitos ministros eram pegos de surpresa ao serem lembrados que estavam contradizendo seus próprios entendimentos. Apelidou de “caderninhos implacáveis” os blocos de anotações Leal. Estão hoje expostos na biblioteca do tribunal, que leva seu nome.
Dessas implacáveis anotações vieram as súmulas: enunciados normativos sintéticos dos entendimentos do tribunal. Sua mentalidade orientada ao raciocínio sistemático, tão explícita em Coronelismo, enxada e voto, serviu, neste caso, à melhora dos mecanismos de julgamento do STF. Seu efeito projetou-se por todo o Poder Judiciário: juízes e tribunais passaram a adotar as súmulas como referências interpretativas, como ainda ocorre hoje.
Victor Nunes Leal ficou no cargo de ministro do Supremo até 16 de janeiro de 1969. Um decreto de Costa e Silva, na esteira do AI-5, aposentou-o compulsoriamente. Partiram também Lins e Silva e Hermes Lima, indicações de João Goulart.
Quando foi expulso, Leal acabara de assumir a vice-presidência do tribunal. Pelo costume, haveria de ser eleito para a presidência seguinte. Um funcionário aposentado do tribunal, a quem entrevistei recentemente, recorda que ele vinha estudando as vantagens da informatização para a gestão judiciária. Talvez fosse a bandeira de sua gestão que jamais aconteceu. O ano, recordemos, era 1968.
Poucos meses antes, havia chegado ao Supremo um recurso em mandado de segurança contra a censura a uma edição da revista Realidade. O motivo: uma reportagem sobre uma mulher que se orgulhava de ser mãe solteira, tida como ofensiva aos bons costumes. O caso foi levado a julgamento apenas em 1969, quando Leal já não estava no Supremo. Foi ser um homem à frente de seu tempo na advocacia, profissão que exerceu até o fim da vida.    

Excerto de um artigo extraído da publicação online da Revista 
Quatro Cinco Um




Letras para a Posteridade coletadas por
ANTÓNIO CUNHA

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