Que revoluções fará a geração do coronavírus?


O que têm em comum Alexander Hamilton, pai fundador dos EUA, e Maximilien Robespierre, líder do terror na República Francesa? A resposta é que nasceram ambos pouco antes ou pouco depois do Grande Terramoto de Lisboa em 1755.

Será por acaso que a geração nascida com a catástrofe de 1755 se tornou — embora de maneiras muito diferentes nos dois casos mencionados acima — numa geração revolucionária? Talvez não.

Uma explicação plausível seria a seguinte. No tempo dos pais deles, o contrato político do absolutismo afirmava mais ou menos o seguinte:
-o estado ideal das coisas é aquele em que o Rei é rei absoluto pela Graça de Deus, e que o súbdito obedece ao Rei como forma de obedecer a Deus. 

O Grande Terramoto de 1755 foi decisivo para que se tornasse dominante a ideia de que Deus, afinal, não enviava catástrofes para castigar os humanos. Os próprios defensores mais acérrimos do absolutismo, como em Portugal o Marquês de Pombal, tiraram Deus da equação do terramoto como forma de proteger o Rei de insinuações de ser ele o destinatário do suposto castigo divino. Mas não se aperceberam de que estavam a deixar entreaberta uma porta que a geração de Hamilton e Robespierre acabou por abrir de rompante: se Deus não tinha estado lá para castigar o reino, então poderia concluir-se que Deus também não tinha estado lá para fazer do Rei um monarca absoluto.

Em conclusão, se o Grande Terramoto tirou Deus da equação, os filhos do Grande Terramoto, nos EUA e em França, tiraram da equação os reis.

De uma forma ou de outra, há por vezes acontecimentos de uma tal magnitude que moldam o ambiente mental em que se vai formar uma geração inteira, que por isso não
funcionará já com os mesmos pressupostos com que viveram os seus pais. As revoluções fazem-se porque os filhos já não vivem no mesmo mundo que os pais e quando chega a altura deles tentam acertar o mundo pelo fuso com que nasceram. Mas essas consequências são diferidas: afinal, decorreram 21 anos entre o Grande Terramoto e a Revolução Americana, e 34 entre o Grande Terramoto e a Revolução Francesa.

Tendo em conta o que fica atrás dito, não será então demasiado cedo para procurar responder à pergunta do título: que revoluções farão os filhos da pandemia do coronavírus? Afinal, essas revoluções só serão feitas daqui a 20 ou 30 anos, certo?

Mas há uma excelente razão para fazer a pergunta do título. É a seguinte: essas revoluções futuras não serão só (nem sequer principalmente, arrisco-me a dizer) influenciadas pela pandemia em si. Elas serão acima de tudo influenciadas pela resposta que dermos à pandemia. E essa começa a contar agora.

Para efeitos meramente especulativos, suponhamos dois mundos diferentes reagindo à pandemia.

Num deles, os políticos (e as nossas sociedades com eles) decidem que há uma parte da população que é dispensável em nome da eficiência econômica. As fronteiras que se fecharam agora não se voltam a abrir. Os demagogos no poder não resistem a usar a convalescença com o mesmo oportunismo com que encararam a doença, aproveitando o contexto para ganhar vantagens comparativas em relação aos seus rivais de outros países. A informação sobre tratamentos, curas e vacinas não é partilhada com transparência por todo o mundo. A pandemia do coronavírus seria apenas o prelúdio a um mundo em que as nossas polarizações e inimizades anteriores pareceriam brincadeiras de criança em relação ao que aí viria.

O mundo alternativo seria aquele em que se faria uma mobilização geral para a resistência à covid-19. Decidimos coletivamente que queremos salvar o máximo de vidas, mas sabemos que para o fazer temos de mudar muita coisa na forma como vivemos, nos organizamos e trabalhamos, e mobilizamo-nos para isso, como já fizemos no passado para ganhar guerras ou chegar à lua. O equivalente ao Projeto Manhattan ou à Missão Apolo seria a procura global de uma vacina, a ser disponibilizada de forma imediata e justa a todos pela Organização Mundial da Saúde. O equivalente à  produção de massa de armas numa guerra seria agora a produção de massa de ventiladores. O equivalente às redes da resistência antifascista seriam agora legiões de voluntários para levar comida à porta de casa das populações em risco. O equivalente ao Plano Marshall seria a instituição temporária de um rendimento básico incondicional, uma espécie de apoio quantitativo direto às pessoas que sairia provavelmente mais barato do que o resgate de há poucos anos aos bancos. E, entretanto, faríamos uma montanha de outras coisas mais simples que já deveríamos ter feito, como ter transportes públicos gratuitos nas nossas grandes cidades.

Claro que há casos de hipóteses intermédias entre estes cenários, mas creio que o motivo do exercício está entendido. Num dos casos, teríamos como resultado um mundo mais destrutivo, com os povos armados de inimizades para um conflito que não deixaria de chegar em breve. No outro caso, teríamos uma sociedade mais cooperativa, mais solidária e mais resiliente.

Cuidado, pois, com aquilo que escolhermos ser nos próximos dias, porque isso vai influenciar a nossa vida por muitos anos.

Por Rui Tavares
Historiador
/Público


Letras para a Posteridade coletadas por
ANTÓNIO CUNHA

Outras intervenções:



Comentários

Mensagens populares